capítulo 03


Ele

Faltavam mais dois minutos para às 20h30. Eu havia prometido a mim mesmo que se ela não ligasse até aquele horário, iria tratar de tirá-la da minha cabeça. Mas, surpreendente que só ela, o telefone tocou aos 45 do segundo tempo da prorrogação. No começo da ligação, disfarcei alguma suposta felicidade e ansiedade por aquele telefonema. Porém, depois de três palavras com ela, naquele tom incrível de dizer “oi” e tudo soar como “eu te amo”, ela me roubou sorrisos eufóricos.

- Eu sabia que você iria ligar - , eu disse, numa falsa prepotência.
- Então é por isso que você atendeu logo no primeiro toque, né? - ela brincou, me vencendo naquele jogo de ironias.


Ela se chama Ananda, falou que significa o sentimento de felicidade suprema. Confesso achei que teu nome combinava perfeitamente com o que eu sentia ao falar com ela. Conversamos um pouco, descobrimos novos segredos e ela falou sobre um show do Teatro Mágico, banda que eu sou fã desde os meus 18 anos, que iria acontecer naquela noite, em uma casa de eventos na Lapa, bairro próximo aos nossos.

- Isso é convite? - disse em um tom sarcástico.
- Não. Isso é flerte para você me convidar - ela respondeu.
- Te encontro em uma hora - finalizei.

Ela

Eu não sabia o que queria. Mas queria vê-lo. Passei meu dia inteiro pensando sobre o que era certo ou errado. Mas queria vê-lo. Queria estar perto dele e esquecer um pouquinho dos meus problemas. Estar com ele, naquele momento, era uma cura para minha cabeça confusa. Eu não sei dançar, mas se ele me pegasse pela mão, eu poderia ser a Ana Botafogo. Era só ele querer.


Ele

Após esperá-la por mais de uma hora, ela cruzou a esquina da Lapa e brilhou como um arco-íris fazendo tudo ao redor ficar preto-e-branco. Meu oftalmologista jura que não, mas eu era daltônico e não sabia. Ela vinha caminhando com sorriso de canto de boca e olhando para o chão, meio envergonhada ainda. Estava com um vestido longo branco, cabelos soltos cobrindo os ombros. Braços nus e dedos com anéis divertidos. Ela estava tão linda que se eu estivesse de blazer e gravata, iria pedi-la em casamento antes mesmo de qualquer saudação inicial. Naqueles poucos segundos, ela já me fez esquecer todos os incontáveis minutos que passei esperando-a chegar.

Ela se aproximou e mordeu meu braço.

- Um beijo é quando você se dá à outra pessoa. Uma mordida é quando você rouba alguém para si -, ela explicou.

Doeu. Mas foi uma estranha surpresa ela querer roubar algo que eu lhe daria de graça.
Entramos, sentamos num bar enquanto o show não começava e conversamos mais um pouco. Ela fazia (e agora deve estar prestes a se formar) faculdade de Psicologia. Queria salvar o mundo através das pessoas. Imaginei que ela seria louca ou chata. Vendo agora, creio que acertei nos dois.

Ela

Após a mordida, eu quebrei o gelo entre nós. Era apenas o nosso segundo encontro – se é que se pode chamar aquilo de encontro. Descobri que estudamos no mesmo colégio quando crianças. Mas, como eu sou cinco anos mais nova do que ele, nunca havíamos nos esbarrado pelos corredores.
Ele é publicitário, o que explicava as tatuagens, a barba mal feita e a paixão por All Star. Teu nome é Gabriel, como se ele fosse um anjo ou algo assim. É inteligente e, para mulheres como eu, inteligência é o maior afrodisíaco do mundo. Não aquela inteligência de saber números complexos ou entender sobre as leis da física quântica. Mas ele me deixava tranquila em falar sobre filósofos e pensadores, mas também tinha uma ironia digna dos fúteis que faz todas as mulheres sorrirem.

Fomos para perto do palco e ele me colocou em sua frente. Sou menor do que ele, mesmo ele não sendo tão alto assim. Entre a multidão, fomos apertados num canto e, quando vi, já estava com a parte de trás da cabeça apoiada em seu peito. Virei para trás e vi aqueles olhos pequenos e negros que pareciam enormes carapuças para mim.

- O que foi? - Ele me perguntou.
- Nada - desconversei.

Mas, então, começou a tocar O Anjo Mais Velho – nossa música predileta. Ficamos frente a frente e começamos a cantar juntos, de mãos dadas como um casalzinho fofinho que aparece nos sites de fofoca ou algo assim. Berrávamos um para o outro: “Só enquanto eu respirar, vou me lembrar de você”. Ingênua que fui, nem percebi que aquilo era um acordo vitalício.